Não existiam mais paisagens, belos lugares, perfeitas dissertações,
nem poesia, Mas, sim, um lápis grosseiro, uma sala, pessoas,
assuntos, gestos, confusões de silabas, línguas, goles ávidos
e ruídos que causam noites mal dormidas.
Ele chegou com tudo a seu pé (ao seu encalço), com o efeito da seiva que corria sangue ruborizando corações, pele, formando ângulos e gargalhadas, fora da hora, do tempo que vinha implacável. Traços.
Tinha em sua cabeça azul , um olhar impróprio, insolente.Nada queria além, nada o faria além. Ele sabia-se, bem depois, e... pronto!
Bêbado, andou por bares, esquinas, casas estranhas, senhor do ato, do prato, de sua própria
comida.
(E aqui, fala o observador imparcial que, por descuido, por
consequência, é o fiel da balança).
-Como observador imparcial, não vejo nenhum mal em repetir um ato desde
que seja sublime ou irremediavelmente mau.
Assobios, fétido odor, fumo forte e barato infestam o ambiente.
No dia do início, no primeiro dia, o grande espetáculo: a aurora
sangrenta, o amanhecer pecaminoso manchado com sangue
coagulado da grande artéria!, da divina artéria.
A dentro! A dentro!
E toda toca se fez escura, toda a armadilha em seu pé (encalço), mas não se cansava de ser o motivo, o único motivo de ser.
E o riso bestial , mortal, ressoava.
Mas, em qualquer canto seria o real, fosse o que fosse, fora da forma, do alcance... A sua
performance em teatro imundo, abaixo de sua alma.
Mas, era um dia de estrelas, uma noite de estrelas, como sempre.
Nada o abatia, nada o torturava, sons, prisões, gritos... Na verdade, tudo o impelia.
Percorria as ruas sem bandeiras, barreiras , coração solto.
E bebia, pelas ruas os rostos que se deformavam ao passar.
Oh! Tolos!
CONTO
Mulher estranha aquela, magra, pálida,com ares de quem não quis voltar mais. O rosto ossudo salientava dois enormes olhos irriquietos (eles riam zombeteiramente). De pés descalços, o cabelo escorrido, caminhava lentamente por uma rua suja e deserta da grande cidade. Sua roupa colava com a chuva fina no corpo esquelético. Edifícios cinzentos, velhas casas, latas de lixo, postes, fios, poças d'água...Os lábios finos esboçavam um débil sorriso, como a aparência de palhaço, sem pinturas . Sim, um palhaco sinistro. As pessoas, que lhes pousavam os olhos, riam nervosamente. Um arrepio visível lhes percorria a espinha. Estranha sensação causava a mulher, presença marcante, e, por mais incrivel que pudesse parecer, quente, muito quente. A existencia não lhe fugia, não lhe negava o brilho, a arte de ser qualquer coisa, ela mesma, a estranha criatura.Parada em frente da vitrine de uma velha loja, ela olhava, olhava... Além do vidro e das coisas que se mostravam, deixava-se levar. Com os braços caidos, ao longo do corpo, com sua estranha expressão zombeteira, atingiu o homem que se encontrava no interior da casa.0 homem passava a ferro um casaco desbotado que algum tempo atrás poderia se dizer que era preto. Era uma loja de roupas usadas. Cheirava a mofo tudo lá dentro: as prateleiras, os cabides, os manequins, o sofá, um balcão, o espelho, o próprio homem.As roupas, não. Numa estranha combinação de cheiros, exalavam um cheiro peculiar de limpeza, de maciez, de cuidado.O óculos caía-lhe pelo nariz longo e meio torto, e, abaixo, um espalhafatoso bigode aprofundava-lhe a boca, deixando-lhe apenas um leve traço do lábio inferior - 0 homem largou o ferro sobre a lata de marmelada tostada pelo frequente uso, dependurou o casaco num cabide a solta por ali, como tantas coisas a solta naquele ambiente, e avançou para frente da loja, onde a mulher permanecia parada. Abriu a porta de leve, com cuidado,olhando-a com uma aparente interrogação.Tirou um maço de cigarros do bolso e acendeu um. Deu uma forte puxada e soltou a baforada no meio da chuva fina e constante que caia.
-A senhora ai! Está sentindo alguma coisa? perguntou cautelosamente. Um som lento, de uma imagem lenta, uma rotação lenta passou pelos ouvidos da mulher,Um grunhido longinquo que a fez retornar. Olhou a vitrine, o vidro, sua imagem, os manequins...Aquele homem ali falava-lhe alguma coisa, pensou, mexia a boca. Seus olhos vasculharam o que tinha a sua frente se fixando no letreiro acima da porta que dizia: "UM CÉU PARA TODOS", roupas usadas –compra-se e vende-se.A tinta marrom do letreiro sobre o fundo azul claro estava sumindo, a chuva, o sol e os anos levaram.
A mulher... seus olhos riam zombeteiramente. -He! Como é que é? Vai ficar parada ai o tempo todo? Precisa de alguma coisa? Tornou a perguntar o homem.A mulher olhou-o friamente. 0 homem assustado não deu um passo, o cigarro lhe caiu do meio dos dedos, a boca se entreabriu. Um arrepio.- Sim respondeu a mulher com sua voz grave, remodelando a expressão desvairada, para um rosto, extremamente simpático e agradável, ou, o que poderia parecer ser.
-0 senhor poderia dar-me uma informação, perguntou a mulher, dando alguns passos em direção ao homem que se movimentou bloqueando a porta de entrada da loja, a mulher riu disfarçadamente , virando o rosto para o lado, para o chão, deixando uma ponta no seu olhar mirado, firme, fixado.-Talvez possa a ajudá-la respondeu o vendedor de roupas. 0 que quer saber? Perguntou.
-Ah! 0 senhor poderia me dizer que dia é hoje? Perguntou a estranha, encurvando o corpo, apertando o polegar ao indicador da mão direita, num gesto de precisão, detalhe, mordendo o lábio inferior. -Ora, hoje é dia vinte e três de dezembro, minha senhora. Silêncio. É só isso que quer saber? -Não, respondeu secamente a mulher, o ano, qual o ano? Ansiosamente torcia as mãos, contraindo a musculatura das costas, dos ombros, do rosto, apertando o olhar.-Puxal A senhora perdeu-se no tempo? Hoje e vinte e três de dezembro de mil novecentos e noventa e sete, respondeu o homem espantado. As palavras do homem caíram-lhe como pedras pelo corpo, jogadas contra ela.
-Mil novecentos e noventa e sete...balbuciou a mulher. Tudo igual. Mil novecentos e noventa e sete... Tudo igual. E voltou por onde já tinha caminhado, descendo a rua, cabisbaixa. 0 homem sem saber o que mais dizer, se contentou em segui-la com o olhar da “ porta do céu” que já se fazia longe. O homem não mais ouvia o balbuciar. Mil novecentos e noventa e sete...Tudo igual... Tudo igual...
- Em verdade não vos digo mais, não vos falo mais. Esqueço-vos em minha própria imensidão de não ser nada. Mil novecentos e noventa e sete... Tudo igual... Bem distante, o homem fechava a porta e, bem distante da porta, a mulher percorria as ruas, as poças, as poças...Em verdade... tudo igual. E riu zombeteiramente, desvairadamente.
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