segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

COM PEITO

Não existiam mais paisagens, belos lugares, perfeitas dissertações,
nem poesia, Mas, sim, um lápis grosseiro, uma sala, pessoas,
assuntos, gestos, confusões de silabas, línguas, goles ávidos
e ruídos que causam noites mal dormidas.

Ele chegou com tudo a seu pé (ao seu encalço), com o efeito da seiva que corria sangue ruborizando corações, pele, formando ângulos e gargalhadas, fora da hora, do tempo que vinha implacável. Traços.

Tinha em sua cabeça azul , um olhar impróprio, insolente.Nada queria além, nada o faria além. Ele sabia-se, bem depois, e... pronto!
Bêbado, andou por bares, esquinas, casas estranhas, senhor do ato, do prato, de sua própria
comida.

(E aqui, fala o observador imparcial que, por descuido, por
consequência, é o fiel da balança).


-Como observador imparcial, não vejo nenhum mal em repetir um ato desde
que seja sublime ou irremediavelmente mau.

Assobios, fétido odor, fumo forte e barato infestam o ambiente.
No dia do início, no primeiro dia, o grande espetáculo: a aurora
sangrenta, o amanhecer pecaminoso manchado com sangue
coagulado da grande artéria!, da divina artéria.
A dentro! A dentro!


E toda toca se fez escura, toda a armadilha em seu pé (encalço), mas não se cansava de ser o motivo, o único motivo de ser.
E o riso bestial , mortal, ressoava.

Mas, em qualquer canto seria o real, fosse o que fosse, fora da forma, do alcance... A sua
performance em teatro imundo, abaixo de sua alma.
Mas, era um dia de estrelas, uma noite de estrelas, como sempre.
Nada o abatia, nada o torturava, sons, prisões, gritos... Na verdade, tudo o impelia.
Percorria as ruas sem bandeiras, barreiras , coração solto.
E bebia, pelas ruas os rostos que se deformavam ao passar.


Oh! Tolos!

Compeito22a

CONTO

Mulher estranha aquela, magra, pálida,com ares de quem não quis voltar mais. O rosto ossudo salientava dois enormes olhos irriquietos (eles riam zombeteiramente). De pés descalços, o cabelo escorrido, caminhava lentamente por uma rua suja e deserta da grande cidade. Sua roupa colava com a chuva fina no corpo esquelético. Edifícios cinzentos, velhas casas, latas de lixo, postes, fios, poças d'água...Os lábios finos esboçavam um débil sorriso, como a aparência de palhaço, sem pinturas . Sim, um palhaco sinistro. As pessoas, que lhes pousavam os olhos, riam nervosamente. Um arrepio visível lhes percorria a espinha. Estranha sensação causava a mulher, presença marcante, e, por mais incrivel que pudesse parecer, quente, muito quente. A existencia não lhe fugia, não lhe negava o brilho, a arte de ser qualquer coisa, ela mesma, a estranha criatura.Parada em frente da vitrine de uma velha loja, ela olhava, olhava... Além do vidro e das coisas que se mostravam, deixava-se levar. Com os braços caidos, ao longo do corpo, com sua estranha expressão zombeteira, atingiu o homem que se encontrava no interior da casa.0 homem passava a ferro um casaco desbotado que algum tempo atrás poderia se dizer que era preto. Era uma loja de roupas usadas. Cheirava a mofo tudo lá dentro: as prateleiras, os cabides, os manequins, o sofá, um balcão, o espelho, o próprio homem.As roupas, não. Numa estranha combinação de cheiros, exalavam um cheiro peculiar de limpeza, de maciez, de cuidado.O óculos caía-lhe pelo nariz longo e meio torto, e, abaixo, um espalhafatoso bigode aprofundava-lhe a boca, deixando-lhe apenas um leve traço do lábio inferior - 0 homem largou o ferro sobre a lata de marmelada tostada pelo frequente uso, dependurou o casaco num cabide a solta por ali, como tantas coisas a solta naquele ambiente, e avançou para frente da loja, onde a mulher permanecia parada. Abriu a porta de leve, com cuidado,olhando-a com uma aparente interrogação.Tirou um maço de cigarros do bolso e acendeu um. Deu uma forte puxada e soltou a baforada no meio da chuva fina e constante que caia.

-A senhora ai! Está sentindo alguma coisa? perguntou cautelosamente. Um som lento, de uma imagem lenta, uma rotação lenta passou pelos ouvidos da mulher,Um grunhido longinquo que a fez retornar. Olhou a vitrine, o vidro, sua imagem, os manequins...Aquele homem ali falava-lhe alguma coisa, pensou, mexia a boca. Seus olhos vasculharam o que tinha a sua frente se fixando no letreiro acima da porta que dizia: "UM CÉU PARA TODOS", roupas usadas –compra-se e vende-se.A tinta marrom do letreiro sobre o fundo azul claro estava sumindo, a chuva, o sol e os anos levaram.

A mulher... seus olhos riam zombeteiramente. -He! Como é que é? Vai ficar parada ai o tempo todo? Precisa de alguma coisa? Tornou a perguntar o homem.A mulher olhou-o friamente. 0 homem assustado não deu um passo, o cigarro lhe caiu do meio dos dedos, a boca se entreabriu. Um arrepio.- Sim respondeu a mulher com sua voz grave, remodelando a expressão desvairada, para um rosto, extremamente simpático e agradável, ou, o que poderia parecer ser.

-0 senhor poderia dar-me uma informação, perguntou a mulher, dando alguns passos em direção ao homem que se movimentou bloqueando a porta de entrada da loja, a mulher riu disfarçadamente , virando o rosto para o lado, para o chão, deixando uma ponta no seu olhar mirado, firme, fixado.-Talvez possa a ajudá-la respondeu o vendedor de roupas. 0 que quer saber? Perguntou.

-Ah! 0 senhor poderia me dizer que dia é hoje? Perguntou a estranha, encurvando o corpo, apertando o polegar ao indicador da mão direita, num gesto de precisão, detalhe, mordendo o lábio inferior. -Ora, hoje é dia vinte e três de dezembro, minha senhora. Silêncio. É só isso que quer saber? -Não, respondeu secamente a mulher, o ano, qual o ano? Ansiosamente torcia as mãos, contraindo a musculatura das costas, dos ombros, do rosto, apertando o olhar.-Puxal A senhora perdeu-se no tempo? Hoje e vinte e três de dezembro de mil novecentos e noventa e sete, respondeu o homem espantado. As palavras do homem caíram-lhe como pedras pelo corpo, jogadas contra ela.

-Mil novecentos e noventa e sete...balbuciou a mulher. Tudo igual. Mil novecentos e noventa e sete... Tudo igual. E voltou por onde já tinha caminhado, descendo a rua, cabisbaixa. 0 homem sem saber o que mais dizer, se contentou em segui-la com o olhar da “ porta do céu” que já se fazia longe. O homem não mais ouvia o balbuciar. Mil novecentos e noventa e sete...Tudo igual... Tudo igual...

- Em verdade não vos digo mais, não vos falo mais. Esqueço-vos em minha própria imensidão de não ser nada. Mil novecentos e noventa e sete... Tudo igual... Bem distante, o homem fechava a porta e, bem distante da porta, a mulher percorria as ruas, as poças, as poças...Em verdade... tudo igual. E riu zombeteiramente, desvairadamente.

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