segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

DELÍRIO DOIS / CONTO

Será este rosto agora que me fita e me fixa na parede, que mostra a mim olhos tristes ao fundo de uma lágrima, que goteja sem ruído, e que suavemente se dilui em meu coração, será este rosto o meu?

Compeito25a

A porta do banheiro da velha casa rangeu toda e se escancarou. Os fracos raios de sol entravam pela basculante tocando , numa leve caricia , o piso de laje úmido e frio. As paredes manchadas pela umidade, o cheiro da doença, aquele branco angustiante, hospitalar. A sala de uma tortura infinita.
A frente, segue-se um corredor escuro com portas pelos dois lados. Mudas.
Na outra extremidade, a porta maior, a que não permitia o dialogo, o bater, o constante entra e sai da vida nas casas, da vida nas portas. Pela esquerda, uma abertura separava, com uma cortina de veludo espesso, quase negro, o corredor, de uma pequena sala. Lá dentro as pratarias, uma cristaleira, um trio de veludo desbotado e sujo. No piso, uma mancha retangular clara de um tapete que deixou a marca do seu tempo.
0 eterno tapete. Mais uma cicatriz na casa. Um pêndulo.
Esticada, sem tocar o chão de madeira, a cortina movia-se lentamente e um vulto magro acariciava-se no tecido ao passar.
Vida? Antes fosse. Resto dela, somente.
Pela janela infiltrava-se um pouco de luz do dia.
Uma mão ossuda tocava levemente o ombro esquerdo de seu próprio corpo, onde apoiava o seu queixo. Os olhos cinza, sem brilho, olhavam o sol dourar a copa das árvores, a rua que serpenteava a uns cem metros da pequena cerca do descuidado jardim onde tudo jazia.
Seu rosto amargurado e enérgico, os cabelos grisalhos puxados para trás, presos a nuca, o corpo disforme pela magreza tísica, fundia-se no vidro,na madeira, no céu claro que parecia sustentar aquela imagem, ao fundo.Parada ali, todas as manhas se entregava ao passado, olhando ao longe.
Passado esse, entrecortado por tosses secas que morriam abafadas por aquele pesado silencio vivo.
A morte pouco a pouco se infiltrava naqueles seres. Sim, os seres.
Havia um pálido menino, nos seus olhos brilhava sinistra a extrema loucura de sua alma. Cabelos lisos e muito negros caiam-lhe pelas orelhas, testa e pescoço.
Sentado numa poltrona atrás da mulher, mexia-se nervosamente. Algo o deixavainquieto. Balbuciava estranhas palavras com uma voz desagradável, um riso e uma baba solta que caia.
A mulher, com seu lenço, agachava-se e limpava-lhe a boca retorcida, disforme pela sua anormalidade, e voltava ao seu ponto de observação, onde as imagens, que se mostravam lá fora, nada significavam. Se transpunha, sempre se transpôs, a vida toda e a própria vida. Ela, a morte eminente.
E um após o outro, os anos vinham-lhe nítidos, cheios de tristeza e alegria. Felicidade não, pois não a conhecera, era uma estranha, não a admitia.Nunca viveu seu presente, não o quis, não o desejou. Sempre andou muito longe de si mesma.
Tudo seguia-se num ritmo rotineiro., a doença, sua companheira mãe da própria loucura , tão serviçal e poupadora de trabalho e preocupação.Mas tudo se acabaria entre os dois últimos. Ela não mais queria, sentia-se cansada, porém, nada iria fazê-la alterar a natureza das coisas, a ordem das mesmas.
Nada poderia mudar o curso daquele rio, não ela que tinha consciência da divina mão que tirava e dava, assim como sufocava.
0 silencio se fez maior. Nada se escutava, nada se ouvia. Os estranhos grunhidos do garoto tinham silenciado.
Não se encontrava mais em sua poltrona, toda sua.
Uma eternidade.
Seguiu-se um baque surdo de um corpo em queda, um ranger de portas.A mulher lentamente retirou-se da janela e passou pela cortina que parecia querer estreitá-la, retê-la para sempre ali.
Pelo corredor à direita, a porta do banheiro escancarada mostrava-lhe o corpo pequeno do garoto, caído grotescamente por cima do vaso. Um estilete frio cravado no peito. 0 sangue escorria pelo corpo nu de um branco azulado, quase transparente, gotejando da laje úmida, no chão,formando uma pequena poça.
Silêncio.
Um acesso de tosse. 0 farfalhar da pesada cortina ao passar do corpo. Um ruído de trinco se abrindo e o vento frio da tarde, livre, percorreu as peças mudas e trancadas entrando por entre frestas, sabendo dos seus segredos.
A porta rangia.
As cortinas balançavam-se ao som da estranha melodia, sujas, com o sangue do menino morto.
Tosses...
Tosses...

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